Comentando um poema

Este blog decorre de uma pesquisa independente e pessoal. O Dr. Francisco Quirino dos Santos está no meu home office há um par de anos. Algum motivo haveria de ter.

Bom, sei de toda controvérsia atual sobre o tema Doutor, mas chamo o Dr. Francisco de Dr. por respeito e por ter se cristalizado assim no seu nome na sua época.

 É sempre difícil falar sobre o tema escravidão, por ser uma indignidade que o sistema político tenha admitido e legalizado a escravização de seres humanos. O Brasil foi um dos últimos países a abolir o sistema escravista. Mas teremos que falar, pois o Dr. Francisco Quirino dos Santos foi um jornalista e abolicionista. Conforme diz a historiadora Beatriz Piva Momesso, o termo na época para jornalista era publicista. Ele fundou, juntamente com um colega, a Gazeta de Campinas.



A historiadora também destaca que os poemas abolicionistas do Dr. Quirino antecedem os poemas de Castro Alves. Além disso, ela explica a importância da oralidade na divulgação da palavra escrita, na época, mostrando que o trabalho jornalístico e o literário atingiam também a população majoritária analfabeta, incluindo a população escravizada. A referência do artigo encontra-se ao final deste texto. 

Depois farei análise dos outros poemas, mas iniciarei pelo que ela destacou.  Então, aqui, posto o poema e, na sequência, minha apreciação. 


O Filhinho da Lavadeira – Francisco Quirino dos Santos, Janeiro de 1861.

Um dia nas margens do claro Atibaia,
Estava a cativa sozinha a lavar;
E um triste filhinho, do rio, na praia,
Jazia estendido no chão a rolar.
A pobre criança, que o vento açoitava,
De frio e de fome chorava e chorava.

A mísera negra co’o rosto banhado
No pranto que d’alma trazia-lhe a dor,
Prendeu-a com força no seio abrazado
De magoas, d’angustia, de luto e de amor.
Pendendo a cabeça no seio da escrava
A pobre criança chorava e chorava.

“Meu filho querido, no meio dos mares,
“Lá onde governa somente o meu Deus,
“Lá onde se estendem os verdes palmares
“Porque não nasceste cercado dos meus?”
E a pobre criança no seio da escrava,
Fitando-a tristinha, chorava e chorava.

“Meus pais lá ficaram; são livres, cantando
“Que vidas contentes que passam por lá!
“E tu, meu filhinho, comigo penando,
“Esperas a morte nas terras de cá.”
Os ventos cresciam; o sol declinava
E a pobre criança chorava e chorava.

“Ai não! que dos pretos as almas não morrem!
“Havemos de ainda p’ra os nossos voltar;
“As águas tão livres dos rios que correm
“Nos levam bem vivos ao meio do mar.”
As águas já meio seu corpo nadava
E a pobre criança chorava e chorava.

“As aves, os bosques, as serras que vemos
“Não são como aquelas de onde eu nasci!
“Tão doces folgares risonhos quais temos,
“Tão belos, tão puros não há por aqui.”
Os fundos gemidos, o eco levava
E a pobre criança chorava e chorava.

“Ó! vamos, meu filho, ao solo jucundo
“Aonde a existência nos corre gentil;
“Em quanto cativos houver neste mundo
“Os negros não devem viver no Brasil.”
A casa era perto: chamavam a escrava
E a pobre criança chorava e chorava.

Assim soluçou, e no seio estreitando
O caro filhinho, nas águas caiu;
Depois muito tempo de manso boiando
Sumiram-se os corpos nas voltas do rio.
Debalde procuram, procuram a escrava,
Se a pobre criança nem mais lá chorava!


***


Vou fazer a análise de maneira despretensiosa, na maneira adotada pelo curso introdutório de leitura de poesia da Universidade de Reading, que pede uma apreciação dos poemas em três etapas: feeling - pattern - puzzle. Sentimento - padrões - indagações, em tradução livre.



1. Sentimento. Na minha leitura, a apresentação é bem humana, a gente realmente sente a aflição daquela mãe e da criança, bem como as aspirações ou saudade de um mundo feliz, por parte da mãe. Não é um mero sentimentalismo; claro que devemos entender o estilo da época. O par mãe-criança que se fecha ainda é uma imagem poderosa, basta lembrar do poema contemporâneo Vietnam, de Wislawa Szymborska. Sim, dê uma olhada.

2. Padrões. O padrão mais evidente, em minha primeira leitura, é a repetição dos versos relativos ao choro da criança, que enfatizam seu sofrimento que não cessa, seu lamento que se reitera. "A pobre criança chorava e chorava". De uso na época, temos a adjetivação direta com termos simples, como "triste", "pobre", "mísera", "belos", "puros", enfim, a adjetivação que nos recomendam reduzir nos estilos mais recentes. Mas, o mais interessante, a meu ver, neste poema, é a inversão do ufanismo romântico da natureza. Não é que, no Brasil, as aves gorjeiam mais belas e a natureza seja mais pujante. É o lugar de origem, de utopia, a África natal, que é descrito como o lugar melhor, mais bonançoso, seja o físico, seja o metafísico, lugar espiritual para o qual a mãe ousará se refugiar com a criança, abandonado a esfera física. "As aves, os bosques, as serras que vemos / Não são como aquelas de onde eu nasci! / Tão doces folgares risonhos quais temos, / Tão belos, tão puros, não há por aqui". Veja que também há uma valorização maior da cultura e sociabilidade africanas, pela voz da personagem, mas que também é uma voz crítica do poeta - cultura e sociabilidade essas que são favoravelmente apreciadas em comparação às do Brasil. Esse conjunto todo é uma boa provocação abolicionista, que almeja os sentimentos bem como as convicções dos leitores e ouvintes do poema, desafiando-as.


3. Indagações. Dito isso, fica para mim a indagação sobre a saída do poema, será a imagem do suicídio - que obviamente visa a chocar, conforme o que acabamos de dizer - uma imagem fácil e datada? Datada não é mesmo, pois imediatamente lembrei-me de duas cenas, uma da literatura musical, outra de cinema, relativamente recentes  e obviamente nossas contemporâneas. Lembrei-me da letra da canção Mar e Lua, de Chico Buarque, que relata a fuga pelo suicídio de duas amantes perseguidas pela difamação em uma cidade pequena, e da cena do filme, se me lembro bem, Amistad, dirigido por Steven Spielberg, em que a mulher com sua criança, aprisionada em navio de tráfico de escravos, está na amurada segurando a criança, fala alguma coisa e se deixa cair ao mar com a criança nos braços, assim escapando a uma situação insuportavelmente injusta, que poderíamos dizer que se tratou antes de homicídio perpetrado pelos escravizadores, que de suicídio da pessoa escravizada. Como igualmente no caso do Frei Tito. Não esqueço, e esse é o veredito. Obviamente, não se está aqui defendendo esta saída, apenas compreendendo. Cabe, já que o assunto é delicado, recomendar o excelente trabalho do CVV, cujo telefone é 188, e gratuito e eles conversam sem julgar.

...

Finalmente, como este post contém uma análise mais pessoal, vou assinar, mas todos os demais posts estão referenciados pela autoria que consta do perfil do blog.

Elisa Sayeg 

São Paulo, 30.07.2020   


REFERÊNCIAS

QUIRINO DOS SANTOS, FRANCISCO. ESTRELLAS ERRANTES. Campinas, 1905. Livro físico.

MOMESSO, Beatriz Piva. Imprensa e política no Oitocentos. A atuação de Francisco Quirino dos Santos. Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas. No site do Instituto.






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